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Zine de Pão

Caderno de notas sobre farinhas, leveduras e temperaturas

Zine de Pão

Caderno de notas sobre farinhas, leveduras e temperaturas

30.Dez.11

Uma semana cheia em experiências

O Natal passou depressa mas a semana de Natal foi uma semana rica de experiências. Voltei da Le Cordon Bleu na semana de Natal e como ainda estava de férias decidi aproveitar a semana para voltar à padaria e trabalhar todas as noites dessa semana. Tive a oportunidade de escolher o horário de dia ou da noite, mas como queria experimentar como é o trabalho tradicional acabei por escolher o turno da noite que depois se verificou prolongar em alguns dias até metade do grupo do dia. A razão de ter escolhido o turno da noite é também por ter a oportunidade de estar na companhia do dono da padaria, o mestre Mattias Wallmark da Söderbergs Bageri.

O Mattias comprou a padaria, que já existe na mesma localização desde 1939, há coisa de uns anos e deu-lhe uma nova vida. Depressa se tornou das padarias mais populares desta zona de Estocolmo. Aos sábados de manhã é ver uma fila imensa de pessoas que dá a volta ao quarteirão a aguardar a vez de comprar o seu pão favorito. O Mattias é fiel à tradição e usa fermentos naturais na maior parte dos seus pães, mas também é aberto a outros tipos de fermentos e sabe utilizá-los para melhorar a qualidade do seu pão. Essa foi uma das principais lições que tive com ele. Desde há uns anos que também faz parte da equipa nacional de padeiros que vai representar a Suécia na final do campeonato mundial de panificação em Março de 2011.

 

A semana de Natal é por natureza uma das "piores" semanas dado o elevado volume de pão que é preciso fazer. Os suecos gostam muito das suas especialidades natalícias e por isso fizeram-se bastantes quilos de Vörtbröd, em que se usa uma espécie de xarope de açúcar chamado Vört e que é usado na fabricação de cerveja. Em português não sei o nome, vocês sabem? Além disso, temos também os famosos bolos de açafrão que são populares na época natalícia sueca: os lussekatter. Açafrão, cujo preço rondava algures os 500€/kg e portanto todo o cuidado é pouco quando se trabalha com um bem tão precioso. Na Söderbergs, para se extrair e aumentar o sabor de açafrão coloca-se os fios de açafrão num xarope de açucár aromatizado com cognac e deixa-se repousar durante umas semanas. Apesar dos turnos terem durado 10-14h por dia, acabei por sobreviver à semana de Natal e devo admitir que foi uma das semanas mais divertidas que tive.

  

 

Há muito para dizer sobre esta pequena pérola de padaria, mas vou tentar focar-me nos próximos paragráfos apenas nas maiores aprendizagens que recebi do Mattias e desta semana intensiva de trabalho.

  • A importância da rapidez e da técnica: Falo em especial da técnica de tender o pão aliada a uma rapidez incrédula, o outro padeiro que lá trabalha tende dois pães ao mesmo tempo em forma redonda em 20 segundos. O Mattias ainda mais rápido é. O tempo é muito importante numa padaria e quando se tendem 100 pães de uma assentada não se pode perder cinco minutos com cada pedaço de massa. Se assim for, quando se acaba de tender o pão número 100, o pão número um já fermentou demasiado. Aliás, a rapidez tem outros benefícios. Se formos rápidos a tender a massa, é necessário menos farinha sobre a bancada pois assim a massa não vai ter tempo para se colar. Eu bem tentei, mas é um acto que se tem de mecanizar e só vem com muitos meses de experiência.
  • A cada massa, o seu tratamento: Diferentes tipos de pão são tendidos de maneira diferente, não só em aspecto visual (redondos, oblíquos, "quadrados", etc.) mas também na forma como são tendidos. Se uma massa tiver uma percentagem de hidratação muito grande e se quisermos ter alvéolos grandes, é necessário ter um cuidado extremo a tender o pão. Um outro tipo de massa, como um pão enriquecido com pedaços de maçã, já não exige tantos cuidados e é tendido de outra forma.
  • O trabalho do padeiro: Após uma semana a trabalhar lado a lado com padeiros, penso que posso dizer que o principal métier de um padeiro é o de controlar a fermentação do pão. Quando se têm 10 massas diferentes a levedar, é preciso usar ou o armário de fermentação para acelerar ou o frigorífico para meter um travão na fermentação, de modo a que haja tempo e espaço no forno para se cozerem todos os pães. Para além disso, as massas comportam-se de uma maneira diferente todos os dias e o padeiro tem de conseguir perceber as mudanças do clima, o forno que hoje não está a funcionar tão bem ou a massa que não foi trabalhada o suficiente. O trabalho do padeiro é fazer uma espécie de malabarismo com todas estas variáveis e com a sua intuição e experiência controlar a levedação para produzir o pão desejado.
  • A economia de movimentos: Isto é mais ou menos um anglicismo e diz respeito ao tentar poupar o maior número de passos possíveis numa determinada tarefa. Lá está, o tempo outra vez.
  • "É lógico, não é?" Deve ter sido a frase que ouvi mais vezes cada vez que o Mattias me explicava algo, a segunda foi "Foi assim que eu te mostrei?" quando eu fazia algo mal, pois se pensarmos sobre as técnicas usadas ou a maneira que se faz um determinado passo acabamos por chegar à conclusão que é lógica que guia o trabalho de um padeiro. Não me consigo lembrar de nenhum exemplo muito bom, mas lembro-me de coisas simples como "O forno está vazio, vamos ver se há alguma coisa no armário de fermentação que já esteja fermentado. É lógico, não é?".
  • Levedar o pão somente com isco ou não - eis a questão: Este foi um assunto que discuti com o Mattias durante as horas de trabalho. Ultimamente no blogue só tenho feito posts com receitas de pão que usam fermento natural e tenho deixado de lado outros tipos de levedação. Muitas vezes evoquei para mim próprio que assim "é que era" pois era como a tradição o ditava. Até fiz croissants com fermento natural. No entanto, se me meter a pensar nesta história dos croissants, não estou a respeitar em nada a tradição, pois os croissants são tradicionalmente levedados com fermento de padeiro. Após a minha temporada em França, também descobri que maior parte das padarias usa poolish e não fermento natural para fazer os pães. O Mattias não usa apenas fermento natural nos seus pães e no entanto faz pães com um carácter e sabor extraordinário. Que é isto tudo quer dizer? Não existem nenhumas "golden rules" e o padeiro, seja ele amador ou profissional, deve usar os métodos de fermentação que ache adequados para se obter a textura, consistência e sabor desejado no seu pão.

Noutras notícias, a Zine fez um ano e esqueci-me da data pois estava em Paris ocupadíssimo com o meu curso de cozinha. Espero que no próximo ano, se façam mais posts e que o interesse pelo pão artesanal e com qualidade aumente. Se alguma vez existir a apelidada "revolução do pão" esta só pode partir dos consumidores. As grandes padarias (fábricas é um nome melhor que padaria) não vão ter a iniciativa de mudar a sua maneira de trabalhar. É necessário um reviver das padarias de bairro, mas para isso é necessário que os consumidores estejam preparados para pagar um preço mais elevado pelo pão. Caso contrário a padaria de bairro não pode competir em preço com as grandes superfícies e vai acabar por oferecer o mesmo pão triste que se encontra nas grandes superfícies. 

  

A todos os leitores da Zine desejo um feliz 2012 e espero vê-los por aqui para o ano com o mesmo entusiasmo e paixão de sempre pelo pão!

 

Fotografias gentilmente cedidas por Sébastien Boudet do Brödpassion.

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