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Zine de Pão

Caderno de notas sobre farinhas, leveduras e temperaturas

Zine de Pão

Caderno de notas sobre farinhas, leveduras e temperaturas

23.Jan.11

O meu Pão Alentejano

Falar de Pão Alentejano é falar de algo maior que nós. É falar de um marco da gastronomia portuguesa. É falar da identidade de uma região. É falar de algo que move amores e ódios. É celebrar a cultura portuguesa. Por todos estes motivos e mais alguns, é também um assunto sensível falarmos de uma receita de Pão Alentejano. Não porque esta seja um segredo, mas porque este pão tem uma identidade tão única que torna injusto chamar "Pão Alentejano" a outros pães que nada têm a ver (sim hipermercados, estou a apontar o dedo a vocês). Esta é minha tentativa de recriar esse pão icónico, a minha homenagem e daí chamar-lhe "O meu Pão Alentejano".

pão bread dough massa massa velha

Não sou alentejano e acho que não tenho nenhuma costela vinda da região, portanto não tenho nenhuma receita de família. O que tenho são memórias do travo ácido do pão alentejano, da côdea rija e baça, do miolo compacto e do seu famoso aspecto que também lhe dá o nome de "Pão de Cabeça". Além disso, tenho a internet, a blogoesfera, todos os meus livros de pão e a "sabedoria" que assimilei nestes últimos anos a fazer pão em casa. A ideia foi dissecar as memórias e descobrir como conseguiria atingir esses aspectos usando a literatura e conhecimento acumulado.

 

O travo ácido: O pão alentejano tem um ligeiro travo ácido. Este sabor é impossível de se conseguir sem usar um tipo de pré-fermento/crescente e sem fermentações longas. O pão alentejano usa tipicamente "massa velha" como crescente e é em parte esta massa velha que lhe dá o sabor ácido. Supondo que nenhum de nós tem um bocado de massa velha de pão alentejano algures em casa, o primeiro passo foi criar uma receita para uma"massa velha" que fosse favorável ao desenvolvimento das bactérias "heterofermentativas" que produzem o sabor ácido: um ambiente frio e uma massa com uma hidratação de 60% ou menos.

 

A côdea rija e baça: Algures no início do blogue, falei na importância do vapor para uma crosta brilhante, crocante e para um crescimento acentuado dentro do forno. Pois é, o pão alentejano não usa vapor nenhum durante a cozedura, daí a côdea sem brilho. Como conseguir a crosta grossa e crocante? Uma cozedura longa e a temperaturas mais baixas (para não queimar a côdea. eu deixei queimar um bocado no fim porque aprecio).

bread pão alentejano

O miolo compacto: Numa discussão na parte de comentários do blogue, discuti com o 7partidas como se obtinha um miolo compacto e denso ou como se obtinha um miolo mais leve e cheio de alvéolos. Está tudo relacionado com a quantidade de água na farinha. As leveduras sentem-se mais à vontade num ambiente com bastante água e no forno grande parte de água evapora-se deixando alvéolos enormes e bonitos característicos de um pão como a Ciabatta (80-90% de hidratação). No caso do pão alentejano, queremos um miolo com alveólos pequenos e portanto passa por usar "pouca" água. Na literatura e na blogoesfera, não é incomum vermos 60% de hidratação nas receitas de pão alentejano. Assim foi.

 

O formato: Agora entramos nas particularidades de cada região em Portugal e no próprio Alentejo existem maneiras diferentes de tender o pão alentejano. Há o famoso pão de cabeça, cuja cabeça pode ser feita antes de entrar para o forno (Baixo Alentejo) ou antes da segunda fermentação e até há quem lhe dê um formato oblongo. Sejam criativos, não é importante. Pessoalmente, tentei dar a forma de pão de cabeça e falhei.

 

Com todas estas ideias em mente, cheguei à minha receita que agora partilho com vocês. É uma receita imperfeita, incompleta e com certeza que irá ser melhorada com os vossos comentários e ideias. O resultado é na minha humilde opinião, bastante bom. Na altura de comer, a minha sugestão é celebrar a cultura e gastronomia alentejana ao acompanhar o pão com um copo de um bom vinho tinto alentejano e alguns enchidos e queijos da região. Ou porque não esperar uns dias e fazer uma excelente açorda ou migas? Há pão mais versátil?

O meu Pão Alentejano

Um pão de 1kg ou dois pães de 500g

Massa velha

  • 70g de farinha de trigo
  • 30g de água
  • 50g de isco de trigo
  • 2g de sal
Juntar todos os ingredientes e amassar até formar uma bola. Colocar num recipiente selado e colocar no frigorífico. A massa velha é preparada 48h antes e repousa no frigorífico durante todo esse tempo. Ao fim das 48h a massa terá dobrado de volume e apresentar um cheiro (e sabor) avinagrado.

Massa final

  • 370g farinha de trigo rijo (alternativa, usar farinha normal)
  • 270g farinha de trigo
  • 390g água
  • 13g de sal
  • 150g de massa velha
Misturar as farinhas e a água até terem uma espécie de massa, deixar repousar 20-30min. Adicionar a massa velha e o sal e começar a amassar até ter uma massa lisa e brilhante (à mão 15-20min, com a máquina 5-7min na segunda velocidade).

Colocar num recipiente ligeiramente oleado e deixar fermentar durante quatro horas. Ao fim de duas horas, deve-se esticar e dobrar a massa de modo a expelir algumas das bolhas de ar. A massa não irá crescer muito nesta fase, a ideia é desenvolvermos o sabor ácido. Outra alternativa é fazer a fermentação no frigorífico durante 12 horas (durante a noite por exemplo).

Pré-aquecer o forno a 250ºc. Polvilhar uma superfície com um pouco de farinha, retirar a massa do recipiente e reservar 200g de massa para a próxima vez que cozerem pão. Tender na forma desejada. Podem fazer a "cabeça" do pão esticando o pão de modo a terem uma metade menos larga que a outra e dobrar uma sobre a outra antes de entrar para o forno ou neste preciso momento. Deixar a massa fermentar durante 45min.

A massa velha deve ser guardada no frigorífico máximo três dias ou em alternativa, no congelador onde poderá repousar durante mais tempo.

Cozer o pão a 250ºC nos primeiros 5min e posteriormente baixar a temperatura para 200ºC. Pães de 1kg deverão ser cozidos durante uma hora, pães de 500 gramas durante 30-45min ou até a temperatura interna atingir os 96ºC.

5 comentários

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    Paulo 27.07.2012

    Viva,

    Obrigado por ter visitado e gostado do blog. Quanto ao sal, eu chamo-lhe "O meu pão alentejano" precisamente porque nunca vi nenhuma receita original do pão alentejano. A quantidade de sal usada é a quantidade de sal que vejo em muitas receitas e que é usada em muitas padarias aqui: perto de 2% de sal em relação ao peso de farinha. No caso desta receita temos 735g total de farinha e adicionei-lhe 2% de peso de sal: ou seja os tais 2g + 13g = 15g.

    A receita presente no livro "Pão em Portugal" da Mouette Barboff que colecciona receitas de padarias em Portugal também usa 2%. Assim sendo, isto do pão é muito subjectivo. Cada padeiro tem o seu método e receita.

    Um abraço!
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    Anónimo 27.07.2012

    Tem toda a razão, eu uso pouco menos que isso, mas é sensivelmente o mesmo! Equivoquei-me entre 100 e 1000g.

    Faço notar uma coisa que refere e que não é despicienda. A tendedura não é nada irrelevante, asseguro-lhe, talvez o melhor seja experimentar na mesma cozedura diferentes formatos e constatar, formatos diferentes concorrem para levedações com nuances diferentes, tal como o peso... NO resto não tem hipótese de alterar.

    Queria aproveitar para dizer, sendo eu industrial da panificação, e em forma de desabafo com alguém que vi escrever e defender o pão como poucos. Como este ramo é um "mundo cão" já viu alguém fazer queijo da Serra em casa por ex? Pão faz-se em todo o lado, há pão Alentejano no Porto, em casa, massas congeladas, semi-cozidas, disto e daquilo. vale-tudo.

    E depois vemos uma série de erros e equívocos a serem propalados.

    Repara bem, o que é de facto o Pão Alentejano, se for aprovado como pretendo o DOP como se pretende, precisa de ser cozido em forno de alvenaria, lenha de azinho, farinho de trigo com certas características específicas, o isco, a tendedura, a tendedeira de madeira e até os próprios panais, tendedura à mão, a água e o sal. Só com tudo isto reunido deve um pão designar-se ALentejano.

    Não quero com isto opor-me a iniciativas como a sua, apenas lamento certos factos nesta indústria. De resto já lhe dei os parabéns e reitero.



    Um abraço.
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    Paulo 28.07.2012

    Caro amigo,

    Sim, consigo imaginar que o peso e mesmo a tendedura possa influenciar a levedação. Daí eu ter escrito noutro artigo aqui no blogue, que isto das horas que se indicam na receita são apenas linhas gerais e que a panificação é muito conhecimento empírico.

    É esse vale-tudo que você fala que eu sou contra. Chegámos a um ponto que metemos uma porcaria qualquer nas nossas mesas e chamamos-lhe pão. O problema não é só em Portugal, o problema é mundial e não advém só dos industriais da panificação. Aliás até acho que o problema vem mais dos moleiros que são "obrigados" a meter carradas de melhorantes nas farinhas para estas se comportarem de uma maneira ordeira. Acabou-se a ligação entre o padeiro e o moleiro, em que eram os melhores aliados e o padeiro tinha de adaptar a sua maneira de fazer pão às características da farinha. Querem-se é farinhas que podem ser tendidas a não sei quantas mil rotações por minuto para se ter uma massa bem ligada em tipo 2-3 minutos, com carradas de fermento e que possa ir cozer ao fim de uns 60 minutos de levedação.

    Digo-lhe uma coisa, quem tem maior culpa nisto tudo até é o cliente, nós que compramos pão. As pessoas querem comprar pão por uma pechincha de dinheiro, depois não admira que os padeiros tenham de encontrar atalhos que vão denegrir a qualidade do pão para poderem vender o pão a determinado preço... Antes que isto mude, é preciso reeducar o consumidor.

    Eu concordo e não concordo com o DOP do pão alentejano. Há certas partes que acho razoáveis, por exemplo dizer que o pão tem de ser fermentado com isco ou que se devem respeitar determinados tempos de levedação. Não acho razoável que tenha de ser cozido em forno de alvenaria, os fornos industriais com pedra refractária (não sei se o nome é assim) produzem resultados bons que em nada denigrem a qualidade do pão, desde que se tenha respeitado à montante todo o processo até à cozedura.

    Não entendi o seu comentário como nenhuma maneira de oposição aqui ao blogue, entendi-o como um desabafo de alguém que trabalha num ramo que é na minha opinião é uma forma de artesanato fantástica e um trabalho em que se devia ter orgulho, mas que infelizmente algures no tempo tornou-se numa coisa que não devia ser.

    Um abraço
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    Anónimo 28.07.2012

    Referir que o forno de alvenaria é exactamente esse que refere, com o lar em pedra refractária.

    O ponto em que refere que temos de educar o cliente é mesmo assim e muita da culpa da situação será porventura dele mesmo.

    Basicamente deixe-me dizer-lhe porque é o que se verifica, quanto mais o leio e deixa aqui plasmadas as suas opiniões, mais concordo. Acresce que se exprime e refere as questões tal e qual as formulo e gostava de poder registar. Congratulo-me e deixa-me muito satisfeito constatar que aquilo que devemos como postura na vida e concretamente para o pão é acompanhado por mais pessoas e pessoas de valor e conteúdo.

    Obrigado profundo e extenso por toda a consciensialização que promove aqui e ainda permitir um espaço de debate aberto e com toda a civilidade e categoria.

    Faz-me até pensar que estou em falta em ser mais pro-activo no sentido de educar e partilhar se quero ser coerente e consequente com o que penso, que é exactamente uma das lições que aqui aprendi.

    Muito obrigado e um abraço.
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