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Zine de Pão

Caderno de notas sobre farinhas, leveduras e temperaturas

Zine de Pão

Caderno de notas sobre farinhas, leveduras e temperaturas

03.Ago.16

O pão em Portugal

Estive por Portugal no querido mês de Julho (aqui é Julho e não Agosto) e tive oportunidade de conhecer pessoas maravilhosas ligadas ao pão. Durante duas semanas tive também oportunidade de provar pães daqui e dali. Soando a velho do Restelo, acho que o pão em Portugal nunca se sentiu tão mal.

 

A opinião podia ser só minha, pois só vou a Portugal uma vez por ano e trabalho noutro país com outra cultura de pão completamente diferente. Contudo, há outros a partilhar a mesma opinião. Outros que vivem em Portugal e são actores, profissionais e também amadores, na área do pão. A condição de só ir a Portugal talvez uma ou duas vezes por ano dá-me a possibilidade de ver as coisas de um modo mais abstracto e uma visão holística da coisa: nada muda a cada ano que passa. A única mudança que vejo são cadeias a abrir mais lojas, uma delas francesa e a outra bem portuguesa, que oferecem pão que deixa a desejar. Pão que acaba por ser apenas bake-off glorificado por uma decoração de loja engraçada. As padarias tradicionais para poderem competir com as "modernas" acabam por cair naquela armadilha de produzir o mais rápido possível e em maior quantidade, o que resulta num pão igualmente medíocre. É pena, porque acredito que por detrás dessas padarias estejam pessoas que têm uma grande paixão pelo ofício mas que com o passar do tempo perderam esse amor, vítimas dos caprichos dos clientes que querem pão barato e a não saber a nada

 

O pão que se come em Portugal é mau.

 

"Mas porque é que é mau?"

O tema ocupou-me os pensamentos nas minhas horas vagas durante as últimas semanas, após voltar da visita à terra que me viu nascer. As conversas que tive com os profissionais (e amadores) ajudou a clarificar o porquê. Como engenheiro de formação, a minha cabeça começa directamente a partir o problema em fragmentos mais pequenos para tentar perceber o grande problema. Os pequenos fragmentos que resultam para mim são: matéria-prima, educação, profissão e por fim, o público. Dedico os próximos curtos parágrafos a cada um dos pontos, consciente que cada um dos pontos poderá ser desenvolvido em textos mais longos. Talvez o faça no futuro, talvez não. Vocês até devem estar surpreendidos por eu estar a escrever alguma coisa num blogue aparentemente defunto. Mas vamos lá ao problema.

 

Como diz o outro, não se faz pão sem farinha. Ou será que é não se faz uma omelete sem ovos? Não interessa. O que quero dizer é que a qualidade das farinhas portuguesas é péssima. Não têm sabor e não têm qualidade para se fazer pão. Se têm é porque lhes foi adicionado melhorantes e outras coisas que não queremos saber. Tentei refrescar um pouco do isco, que levei daqui da nossa padaria, com farinha de trigo T55. Usei uma marca que se encontra em quase todos os hipermercados e fiquei pasmado com o resultado. Não aconteceu nada. Eu pensei que com o calor que se faz sentir que depois do refresco só teria de esperar duas ou três horas para ver alguma actividade. Não aconteceu nada. Tentei com outras farinhas. Não aconteceu nada. Que concluir da coisa? Não sei bem. O panorama ainda mais negro é quando se pensam em cereais nacionais. Trigo e centeio que cresce em Portugal sofre provavelmente do mesmo mal de trigo e centeio em outros tantos países, cultivam-se espécies que prioritizam a produção por hectar em vez do sabor ou qualidade para ser usadas em pão, cultivam-se espécies que são usadas para ração e o resto acaba como farinha (ou vice-versa). Não basta apenas comprar farinha moída em mó de pedra, porque se a matéria-prima não tem qualidade para se fazer pão não há de ser a mó de pedra que a torna numa farinha boa para se fazer pão. O que resta aos padeiros do nosso país, amadores como profissionais, enquanto não aparece algum agricultor que queira resolver o problema? Farinhas importadas. Não devia ser preciso ser assim.

 

A educação que se oferece na área da padaria em Portugal é fraca. Eu já desconfiava disso, porque o problema aqui é igual, mas conversa com profissionais deixou-me mais esclarecido sobre a questão. Os nossos recém-formados padeiros saiem dos seus cursos de formação profissional a saberem misturar mixes e basicamente a serem máquinas autênticas. Quando se deparam com uma realidade um pouco diferente, mais artesanal, muitos desistem porque não foi assim que aprenderam. É difícil encontrar pessoas recém-formadas, com paixão pelo ofício e com vontade de aprender e se desenvolver. Tanto por culpa da educação oferecida como por outro ponto igualmente importante: a profissão de padeiro é vista como uma profissão com estatuto baixíssimo. Quem quer ser padeiro em Portugal? Quem é o pai ou mãe que incentivam o seu filho/a quando este diz que gostava de se formar como padeiro? A profissão de padeiro está na mesma situação que a de cozinheiro se calhar estava há dez ou quinze anos. Hoje em dia, já é aceitável que o filho/a se forme como cozinheiro, mas padeiro? Esquece lá isso. Novamente, não sei bem o que é preciso mudar. É preciso que tanto empregadores como padeiros arranjem uma maneira de resolver a coisa. Dos empregadores a possibilidade de oferecer salários mais altos e mais organização e estrutura no que toca às horas de trabalho para se ter uma melhor qualidade de vida. Dos padeiros, uma abertura a fazer as coisas de modo diferente, de ter paixão pelo ofício.

 

É muito fácil escrever que as remunerações deviam ser mais altas quando as margens de lucro são as que são. Sabia que é quase impossível sobreviver apenas como padaria de venda directa ao cliente em Portugal. Porquê? Porque a maior parte de nós continua a querer pão o mais barato possível e mal cozido. As padarias que tentam sobreviver apenas como padaria, arrependem-se rapidamente e transformam-se em padaria/restaurante/café para conseguir rentabilizar as operações da padaria. Algumas não sobrevivem mesmo depois dessa restruturação. É triste, pois muitas delas tinham boas intenções no que toca ao pão. Tudo porque queremos pão barato (ah, e mal cozido). Nenhum dos outros três pontos que referi é possível de ser resolvido se o público não mudar a sua atitude em relação às padarias. Melhor matéria-prima, elevar o estatuto da profissão e a qualidade da educação só é possível se todos estivermos dispostos a pagar um preço mais elevado pelo pão.

 

O pão em Portugal está num estado miserável, mas é possível mudar.

 

Comentário: Estive apenas pela área da grande Lisboa, mas penso que o problema é igual no resto do país.

 

 

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