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Zine de Pão

Caderno de notas sobre farinhas, leveduras e temperaturas

Zine de Pão

Caderno de notas sobre farinhas, leveduras e temperaturas

21.Out.16

"Que pão comprar para os meus filhos?"

A pergunta chegou através de um amigo próximo e não é uma pergunta fácil de responder. Também não é difícil, mas exige um texto um pouco mais longo do que uma conversa via Facebook.

 

A primeira coisa a ter atenção é que o melhor pão para os teus filhos é exactamente o mesmo que o melhor pão para ti próprio. Não é por sermos adultos que passa a ser OK comer pães cheios de ingredientes redundantes, como aditivos, açúcares, enfim - coisas redundantes e que não fazem lá falta, ou com apenas farinhas refinadas.

 

Para mim o pão ideal para nós tem que ser o mais nutritivo possível, i.e. feito com uma boa parte de farinha integral, farinha sem adivitos moída em mó de pedra, farinhas de espécies de trigo antigas (espelta, emmer, einkorn), de fermentação longa (com isco de preferência) e bem cozido. Sementes e derivados também são interessantes de um ponto de vista nutricional mas eu sou um pouco contra a coisa, pois em Portugal são na maior parte das vezes usadas para dar sabor a um pão que não tem sabor - porque a farinha, normalmente refinada T55, não sabe a nada.

 

Não se faz uma omelete sem ovos e não se faz um bom pão sem boa farinha - é a parte mais importante. Pouco interessa o processo* se começarmos com uma matéria prima de má qualidade. É de conhecimento público que sou a favor de farinhas moídas em mó de pedra, tanto no formato refinado como integral. Porquê? Porque até no formato refinado conseguem-se encontrar partes minúsculas do germe e do farelo. Os moínhos de rolo industriais, separam os três componentes à partida e são moídos separadamente. Passando para a farinha integral, a única farinha integral que existe é farinha moída em mó de pedra e que não é peneirada. "Ah e tal ó Padeiro, e a farinha integral da marca X que é moída em rolo?" - não é farinha integral. A farinha "integral" dos moínhos industrais é farinha refinada com adição do farelo. A parte com mais nutrientes do grão de trigo, o germe, não é incluída nessas farinhas "integrais". Basicamente, fazem isto para as farinhas terem uma longevidade mais longa. As gorduras, boas, presentes no germe encurtam a longevidade da farinha - por isso na maior parte dos casos são utilizadas para ração. Anda o gado a comer melhor que nós.

Os pães com farinhas integrais, são ainda mais nutritivos para ti se forem fermentados durante umas longas horas. Quantas horas? Não sei, mas pelo menos umas 12 a 18 horas - diria eu numa observação empírica. O farelo do grão está cheio de minerais. Infelizmente, o farelo do grão também está cheio de outra coisa chamada fitatos**:

Fitato = Ácido Fítico + Mineral?

Ó Padeiro, a tua mãe é professora de Química para conseguires perceber essas coisas?" - por acaso é, mas não é muito difícil perceber a fórmula em cima. Basicamente o ácido fítico agrega-se ao minerais presentes no farelo, como zinco, cálcio e fosfatos e forma um fitato. Infelizmente os fitatos são anti-nutrientes, e que impedem os minerais de serem absorvidos pelo nosso organismo. Fear not, a solução passa por demolhar e fermentar os grãos durante umas boas horas - que é basicamente o que se faz quando se faz pão, junta-se àgua e um tipo qualquer de fermento à farinha. Quanto mais tempo o pão fermentar, mais tempo as enzimas presentes no fermento têm tempo de quebrar a ligação entre o ácido fítico e os minerais, libertando-os para poderem ser absorvidos por nós.

 

Não há volta a dar à coisa, o trigo é o grão rei no que toca à panificação. Tem as características ideias para se fazer uma massa lêveda. No entanto, o trigo moderno é mais difícil de ser digerido do que espécies de trigo mais primitivas como a espelta, emmer e einkorn. 

 

O último ponto em relação às farinhas têm a ver com os aditivos. Os aditivos só estão lá para disfarçar uma farinha de má qualidade, sem características técnicas de qualidade para se fazer pão, e para adicionar minerais que na maior parte dos casos já estão presentes na farinha (integral!) mas que não absorvidos pelo organismo porque somos calões e queremos pão levedado em 30 minutos.

 

Por fim, em Portugal continua-se a comer pão mal cozido porque sabe bem mas não é muito bom para nós. O nosso sistema digestivo não é muito bom a digerir amido meio crú. Espero pela padaria que se atreva a cozer os seus pães durante um período mais longo e com uma temperatura mais alta, fica o desafio. Ignorem que os vossos clientes digam "TÁ QUEIMADO!", "O VOSSO PÃO DÁ-ME CANCRO" - são coisas que ouvimos no dia a dia mas que acabamos por ignorar, pois estamos a produzir um pão mais nutritivo, de mais fácil digestão e que dura mais tempo.

 

Se tiveram a paciência de ler até aqui, um bem haja. Caso contrário, aqui fica uma espécia de lista decrescente do melhor pão para o pior pão: 

  1. Pão bem cozido, com farinhas integrais moídas em mó de pedra e de longa fermentação. Se tiver trigo, que seja trigo de espécies primitivas como espelta, emmer e einkorn.
  2. Pão feito com farinhas integrais moídas em mó de pedra e de longa fermentação. Se tiver trigo, que seja trigo de espécies primitivas como espelta, emmer e einkorn. 
  3. Pão feito com farinhas integrais moídas em mó de pedra e de longa fermentação. 
  4. Pão feito com farinhas integrais moídas em mó de pedra.
  5. Pão feito com farinhas "integrais" moídas em rolo industrial e de longa fermentação.
  6. Pão feito com farinhas "integrais" moídas em rolo industrial.
  7. Pão feito com farinha refinada moída em rolo industrial.
  8. Pão feito com farinha refinada moída em rolo industrial e com aditivos (melhorantes, açúcares, etc.)

Podia adicionar mais uns tipos de pão entre alguns dos números, mas para simplificar o texto decidi apenas escrever estes. Portanto, o pior pão que podem comprar é o número oito e o melhor que podem comprar é o número um. Infelizmente, penso que o último é o mais fácil de encontrar e o primeiro é o mais difícil de encontrar. Atenção que quando me refiro a pão com farinha integrais, refiro-me também a pães que não são 100% integrais ,por exemplo pães de mistura integral/refinada.

 

Miguel, aqui tens a tua resposta que era complicada de escrever pelo chat do Facebook!

 

* mais ou menos, mas isso dava pano para mangas. Fica para outra altura.

** não é só os grãos que têm fitatos. Sementes, feijões e grãos também - basicamente tudo o que é uma semente de uma planta.

 

 

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